domingo, 12 de maio de 2013

O penúltimo dia de Vovó Anália


                      

                        

Logo que iniciamos as atividades de assistência nessa determinada comunidade, ainda na fase de diagnóstico local, deparamos com uma família muito especial; na verdade uma linda família, composta do casal e três belos filhos, além de um personagem marcante, não só pela singeleza e simplicidade, mas sobretudo, 
pela união, fortaleza e carinho com que era tratada por todos os componentes daquela família. 
Nunca mais vi qualquer coisa parecido. 
Dona Anália, contava 98 anos de idade e estava às véspera de completar seus 99; estava eufórica como uma criança a espera do dia festivo. Seu neto Guilherme de 10 anos,- (só guardei os nomes dos dois)-nos avisou  que a família não poderiam fazer o bolo, e isso o estava deixando triste, porque não queria ver a avó triste. 
Os adultos, confessaram que estavam num momento delicado, onde um bolo estava completamente fora de cogitação. 
Neste dia, nos acompanhava um grupo de senhoras da 'sociedade' , que recebera como tarefa de seus terapeutas  de fazer algum trabalho voluntário. Decidiram integrar nosso grupo e visitar uma comunidade carente. Então, estas, ao constatarem aquela realidade completamente diversa das suas, decidiram que ofereceriam o bolo a vovozinha do Guilherme. 
E, se empolgaram tanto com a ideia quanto a aniversariante. Lembro-me como se  fosse hoje, quando lhe perguntaram o que desejava como presente, e a avozinha respondeu: _" Quero uma camisola com ''penhoar'' e um par de chinelas de cetim."
Pronto, as senhoras que nos acompanhavam passaram a combinar a próxima visita; Dividiram as incumbências e não falaram noutra coisa o resto do tempo: Trariam lençóis novos, etc, etc, etc., a lista só aumentava na mesma proporção que tomavam consciência daquela realidade, enquanto retornavam aos seus carros. 
O aniversário seria no dia seguinte. 

                             

Nossa visita acontecia a cada oito dias.
Nós outros, seguimos visitando os outros moradores, nos apresentando e diagnosticando cada caso. E não as vimos mais.
  Na semana seguinte, quando, chegamos na comunidade, grande era a ansiedade por saber como teria sido a festa de 99 anos da vovó Anália. 
Mas algo me dizia que eu não gostaria das notícias. Havia algo como um 'hiato no ar'; Um sentimento estranho
Percebi logo de cara pelas feições do pequeno 
Guilherme, uma nuvem de tristeza em seu rostinho de menino super ativo e alegre; que esperou pela minha pergunta de olhos baixos. 
A  notícia não se fez esperar; dona Anália tinha falecido logo depois da visita do grupo de senhoras.
 Recebera um lindo bolo de aniversário, jogo lençóis novos, a camisola rosa com 'penhoar' bordados, os chinelos de cetim combinando, sorrira muito, contente como uma menininha, recebera todo o carinho a que fizera jus por seus praticamente 100 anos de vida, junto aos seus entes amados. 
A noite, deitou-se para dormir, e partiu. 
Assim, feliz da vida, com seu sonho de menina realizado.
Poucas vezes, eu vi um idoso tão amado e tão bem tratado pelos seus familiares, mesmo na pobreza, pois carinho respeito e amor, não custa dinheiro; nascem de corações generosos.
Em seu lugar, ficou um vazio, percebido nos olhares silenciosos dos familiares.
Nós também. 
Porém, sabíamos o quão importante fora aquele encontro para cada um de nós.
Aquelas senhoras, cujos problemas passavam longe das necessidades primárias daquelas famílias, que por falta de opção foram viver no único lugar que conseguira, em meio a lama fétida do esgoto correndo a céu aberto, e toda sorte de deficiência estrutural, que concebe dignidade humana, encontraram naquele lar humilde e miserável, uma lição tão grande, de amor, união familiar, respeito ao idoso, as crianças, que com certeza foram elas quem deram alta aos seus terapeutas. 
Nós também. Cada um de nós saiu dessa experiencia mais enriquecidos, duma riqueza que não se compra.
Eu que sempre saia dali, repleta de interrogações, descobri com eles, que o amor, a decência,a generosidade, o espírito de família, a dignidade também veste trapo e pode  tranquilamente viver num barraco de favela.

                         
Tantos anos já se passaram. Minha filha caçula era apenas uma bebê, e hoje já é uma linda moça, maior que eu. Assim também deve estar o Guilherme, deve ter se transformado num belo rapaz, mas assim como eu, e muito mais, deve guardar belas recordações da vovó Anália. Volta e meia me lembro dessa história, e sorrio contente, por tê-la conhecido em seu penúltimo dia de vida aqui junto a nós, e saber que ela teve seus desejos satisfeitos. 
Tão fácil meu Deus! 
Tão simples. 
Ainda me lembro de seu rostinho miúdo, seu corpinho debilitado pelos anos, sentada naquele catre no canto do corredor da casa entre a sala/cozinha e o quarto do casal, forrado de panos emendados a guisa de colcha,o pedaço de carpete fazendo  a função de tapete, e seus olhinhos acanhados porém iluminado por um sorriso tão sereno, que creio somente se consegue ao atingir 99 anos de idade.
A você vovó Anália, ainda agora, e aqui, o meu carinho e respeito, o meu muito obrigada pela belíssima lição que nos deste.
Onde quer que esteja sinta-se beijada.
Que Deus a abençoe sempre, sempre!

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